Uma defesa da ficha de personagem
- Oráculo Cinzento

- Jun 12
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Updated: Jun 13
Eis uma máxima muito difundida, sobretudo após a explosão de popularidade do OSR: "a solução não está em sua ficha". De fato, o princípio parece inabalável. Quando estávamos desenvolvendo a Arcana Primária, este foi um dos grandes princípios norteantes. Fomos inspirados por conversas com várias pessoas veteranas do ramo, era algo muito enfático na época.
Sua essência é que o jogador deve pensar por si e não pedir testes para se livrar de um problema. Abstrair por completo a solução de problemas, sabemos, derrota a diversão. Mas muitos levam o princípio a um zelo fanático e exagerado que leva o jogador a ignorar que exista um personagem em jogo.

Assim, um jogador versado em escoteirismo, mas jogando com um personagem sem aptidões com a natureza selvagem, resolve todos os problemas de sobrevivência em um piscar de olhos. Ele esquece que está interpretando um personagem. E o que há de errado nisso? Nada, se você estiver jogando como seu alter-ego, como uma cópia de si. Isso transforma o jogo em uma espécie de "estudo de caso". Mas, se estamos em um jogo de interpretação de papéis, não podemos dizer que esse comportamento faça parte da categoria.
Seria melhor jogar um jogo de simulação de sobrevivência, por exemplo, e ignorar o aspecto do personagem criado. Ou melhor, se você pretende jogar sem depender de uma ficha, para quê se dar ao trabalho de fazer uma? Respondo: para o combate, e só para isso (abstraindo pequenas exceções). Inclusive, muitas vezes, vemos escaladas e habilidades sorteadas em 1d6, com um critério de sucesso estimado pelo mestre. É um dado de baixíssima granularidade estatística, e dificilmente será coerente em uma simulação "realista", como dizem (mesmo assim, é muito prático).
É exatamente por isso que há um movimento desvinculando os jogos OSR do conceito de RolePlaying. É o tal do Classic Adventure Gaming, que já mencionei por aí. É bem justo, já que interpretar um personagem é, segundo o velho dicionário Michaelis, "Ser a imagem ou a reprodução de [algo ou alguém]". É modelar, seja na ilustração, na descrição, ou no comportamento, o conjunto de relações que define seu objeto de interpretação. No exemplo acima, um jogador escoteiro que escolha um personagem de baixíssima sabedoria ou proficiência com sobrevivência e que ignore estes fatos, não está "ilustrando bem" aquilo que deveria representar. O comportamento do personagem não condiz com seus parâmetros. É o mesmo que prometer mudar o comportamento, mas só mudar de roupa.
Feito o preâmbulo, há dois problemas interconectados que quero endereçar:
1) A ficha de personagem realmente deve ser abstraída das soluções?
2) Testes de atributo ou perícia tornam o jogo menos interessante?
Vamos começar.
Pressupõe-se que interpretar um personagem seja algo banal, ou seja, que não seja um desafio digno. Muitos que dizem isso usam como fundamento empírico aquele arquétipo de jogador que faz Cosplay, atuando com vozes engraçadas e criando redações intermináveis sobre a biografia do personagem. Certamente isso está contemplado na interpretação de papéis, mas é um caso extremo. Usá-lo em uma argumentação é usar um espantalho, e, mesmo assim, isso não torna o jogo menos desafiador por si só, apenas muda o foco do desafio.
Quem já jogou repetidas vezes GURPS, Call of Cthulhu ou Warhammer Fantasy, sabe que é possível interpretar personagens sem exageros caricatos. Há uma alegria em colocar-se nos calçados de alguém totalmente diferente, de tentar sair das amarras de nossos hábitos e agir de outra forma. Aliás, essa é uma das grandes alegrias da literatura, em geral.
Assim, mesmo que eu saiba tudo sobre sobrevivencialismo, lidar com um personagem sem essa perícia é algo bem desafiador: o que se pode fazer? Que tipo de assuntos poderiam ser conhecidos por ele que, se usados com argúcia, resolveriam o problema? Por não ter essa perícia, o prospecto de um teste falho provoca o jogador sensato a pensar com muito mais afinco em modos de aprimorar suas chances (vamos falar sobre o ato do teste depois). Se você não consegue pensar em nada, os dados irão matá-lo. Deveria ter pensado melhor antes de enviar um completo inepto em uma exploração perigosa.
Perceba: você não está usando a ficha para se livrar do problema, mas para resolvê-lo de forma consistente.
Em outras palavras, a solução não está na ficha, mas deve ser informada por ela.
Se não gosta disso, não use fichas.
Vamos para o segundo problema, que não é menos polêmico: é realmente desejável substituir testes por diálogos dependentes totalmente da vontade do mestre?
A rolagem de dado (ou qualquer método aleatório) é imprescindível para dar emoção ao jogo. Devo insistir muito nisso. Se o mestre não solicita qualquer rolagem, o jogo vira apenas uma imagem de seus gostos e intuições, um espelho totalmente parcial de seus desejos. A incerteza dos jogadores está pautada em adivinhar isso. Aquele que aprender a agradar o mestre terá um personagem muito próspero.
Em décadas de jogo, em nenhum momento me senti tenso por depender de uma resposta assertiva do mestre, mas, em todos os momentos de tensão, esperei pelo resultado dos impiedosos e caóticos dados. A previsibilidade é desejável em uma linha de produção, ou em um medicamento, não em um jogo. Os dados dão a impressão de que o mundo imaginário existe a despeito do mestre, que possui leis da natureza que não podem ser manipuladas com habilidades de people pleasing.
Além desse fato, a rolagem de dados nos ajuda a compreender a relação do personagem com o mundo imaginário, porque as chances de sucesso são diretamente relacionadas à concepção do personagem.
E aqui já podemos desmistificar algo sobre os testes: rolagens de atributos ou perícias são desejáveis, mas não como algo que dispense descrições ricas e soluções criativas. O mestre poderá bonificar ou penalizar interpretações boas ou ruins, e isso é uma espécie de meta-gaming saudável, quebrando a quarta parede e apontando a câmera para o jogador. Mas ignorar por completo que é o personagem quem deverá superar o desafio é derrotar o propósito desse tipo de jogo.
Quando se trata de combate, ninguém reclama de rolar o dado e somar modificadores, mesmo que a descrição do movimento seja mal desenvolvida. Desses radicais "anti-teste", poucos compreendem que um combate é um conjunto de testes de perícia (ou atributo, a depender da simplicidade do jogo). Aqui, se um personagem é ruim com machados e está a empunhar tal arma, não será surpresa que, ao atacar um antagonista, ele erre mais do que acerte. Isso é consistente com quem o personagem é, ignorando-se o fato de o jogador ser ou não proficiente com uma ou outra arma (ou, no meu caso, em nenhuma).
Situações sociais também podem tornar-se muito mais interessantes com testes, pensando nelas como "combates intelectuais". Devo repetir: você não dispensa a interpretação, mas usa ela como meio de obter modificadores. A questão é que, se houver algum risco nessa situação, é na rolagem de dados que isso ficará mais tonificado.
Também temos o menos falado método de "interpretação a posteriori" (se não me falha a memória, isso veio do "Vampiro: A Máscara"). Aqui, o teste é rolado primeiro, mas o jogador deve criar um diálogo ou narração consistente com o resultado depois. Bom, o combate tem alguma coisa parecida com isso, mas esse método é muito mais divertido fora dele. Muitos torcem o nariz, porque parece que o jogador perde totalmente o controle do personagem, mas esse tipo de improviso dá um baita alívio cômico (e dá mais ênfase aos atributos "Carisma" e "Inteligência", por exemplo). Aqui, o teste é usado para provocar a interpretação, não para se livrar dela.
Bom, deixo por último um argumento mais pessoal: rolar dados é terapêutico, e sair de um jogo sem fazer isso é um tanto decepcionante.
Antes de deixar-vos, fica uma última provocação: a ênfase em perícias e sua importância na interpretação não vem da "new school" como se fala por aí. Se estamos falando de D&D, Gary Gygax já as havia introduzido nas Oriental Adventures e outros suplementos para AD&D, que vieram a se tornar mais evidentes na segunda edição. Os jogos que Gary Gygax criou depois de D&D, como Dangerous Journeys e Lejendary Adventures (sim, com "j"), ambos usavam testes de habilidade. Se Gygax não era "old school" em todos esses anos de desenvolvimento, bem, não sei por que ele é tão citado por aí. E sejamos francos: o "old school" é usado especificamente para um certo grupo de pessoas que jogavam DUNGEONS AND DRAGONS de um jeito muito peculiar. Já demonstrei aqui que, de longe, não era o modo universal de se jogar. Outros jogos, como Call of Cthulhu, GURPS, Warhammer, RuneQuest existem desde os anos 1980, e nunca se conformaram aos moldes que vemos repetidos por aqueles que se dizem verdadeiramente "old school".
Se você quiser continuar usando a estaca de 3 metros para tatear o chão e evitar armadilhas sem rolagem: ótimo. Mas cuidado com a armadilha que não pode ser acionada assim: o dogma irrefletido.



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